quinta-feira, 5 de julho de 2018

Os Romeiros – 2ª Parte

Diz um velho adágio que: "em dia de divertimento, ninguém percebe passar o tempo", e, assim, chegou o domingo, com o fim da festa do Bonfim, com os festeiros e vendedores procurando ganhar os últimos tostões de qualquer maneira O leilão de prendas corria apressado e a roda da fortuna dava três e quatro prêmios de cada vez, num estímulo para os últimos candidatos. O padre Timóteo movia-se atribulado entre o povo bulhento, expedindo ordens e fiscalizando cosas, atendendo crianças e orientando festeiros. Os derradeiros foguetes eram disparados para o céu, num estouro contínuo e seco. O churrasco sobejava chiando nas trempes aquecilas e os churrasqueiras berravam a plenos pulmões, sobre o vozerio humano:
— Vamos, minha gente! Dois churrascos por um! Aproveitem! Está gostozinho! A farinha é de graça e à vontade!
O povo ria e mais adiante as mocas anunciavam:
Vai correr a colcha de seda! São os últimos bilhetes! Os últimos bilhetes! No meio da multidão festiva, as pretas velhas vendiam gostosos acarajés, nadando no azeite de "dêm-dêm", bolinhos de camarão com pimenta malagueta, munguzá feito de milho no caldo de coco, cocadinha, pipoca na manteiga, paçocas de milho cozido, "quindins" de gema de ovo no coco ralado, amendoim torrado, bolos de arroz, de polvilho, de carne e aveia; os vendedores ambulantes ofereciam pentes, bexigas coloridas, espelhinhos, colares de contas de vidro, bijouterias, e toda sorte de quinquilharias.
Os dois sinos da igreja batiam festivamente anunciando o fim de festa com a saída da procissão. A pinga e a cerveja corriam soltas. Os namorados passavam sobraçando bonecas, estatuetas, garrafas de vinho, cestinhas, bolos enfeitados é imagens de santos, prêmios que haviam ganho na roleta, pesca e no leilão. Atrás da igreja juntavam-se as carroças e os caminhões dos romeiros. Tudo ali era movimento; desmanchavam-se barracas, enrolavam-se lonas, recolhiam-se roupas, caixotes com utensílios e garrafas vazias. O vozerio e a atrapalhação dominavam o ambiente; alguns manobravam os veículos, apontando-os para a estrada; outros apressavam-se a conferir as cargas, juntar os trastes e separar coisas, enquanto ainda era dia.
— Vamos pessoal; a noite está chegando e precisamos sair logo daqui, senão perdemos a última balsa do rio da Várzea,  gritava o Gumercino, enquanto Miro punha água no radiador do "Chevrolet". Eram nove horas da noite, quando eles chegaram à margem do rio; dez caminhões já esperavam, em fila, a vez de passar à balsa. Na outra margem as casas eram grotescas figuras sob o efeito da cerração formada na superfície da água. Duas horas depois chegou a vez do caminhão do Miro; a balsa deslizou de enviés movida pela força da própria corredeira do rio, e momentos depois o veículo já roncava fortemente na subida da outra margem. Dentro, os romeiros procuravam-se acomodar para cochilar, enquanto outros conversavam trocando poucas palavras, frases soltas e sem ânimo, pois era visível o cansaço e o desejo de chegar ao lar. Em breve, fez-se completo silêncio e só de vez em quando se ouvia alguma tosse ou o ronco do mais dorminhoco. Quando o caminhão fazia as curvas, os faróis então projetavam sua luz sobre os palanques das cercas, as rochas descarnadas e as árvores, cujas sombras dançavam na superfície da estrada arenosa um bailado fantasmagórico . As vezes um mocho voava súbita-mente do cimo de algum arvoredo ou um lagarto, lépido, cruzava a estrada numa corrida rasteira . Nas descidas, a luz dos faróis sumia-se nos descampados das curvas engolidas pelos precipícios. Gumercino, o chefe daquela empreitada, não abusara da bebida para comprovar sua responsabilidade. Viajava sentado junto do Miro, na cabine do caminhão, satisfeito e tirando longas baforadas do cigarro de palha, mas sem dominar estranha inquietação. Singulares lembranças lhe invadiam a mente. A estrada amarelecida e ensaibrada, às vezes lhe parecia branquíssima e pedregosa, enquanto os pneus do caminhão, de repente, perdiam o seu chiado costumeiro, transformando-se em rodado de carruagens barulhentas. Súbito, ele bateu no joelho direito, com excessivo vigor:
— Que bobagem! Miro voltou-se, calmo:
— Que foi que disse, seu Gumercino?
— Nada! Bobagens, Miro. Para não cochilar , eu pensava no mundo e não sei por quê, prendi meu pensamento em coisas da Itália! Ora, veja só; da
Itália! Nunca me incomodei com isso!
A viagem prosseguiu monótona e aos sacolejos. Os romeiros estavam completamente fatigados e a maior ia num sono confortante. O caminhão gemia nas subidas da estrada e depois de vencer os topes, ganhava velocidade no declive, acordando o pessoal e fazendo alguém esparramar-se pelos bancos. Olhando para os lados, Gumercino franziu os supercílios, algo inquieto, pois as árvores, os palanques, as encostas rochosas da estrada surgiam e desapareciam cada vez mais rapidamente. Sem poder dominar o temor que o invadiu, ele exclamou:
— Cuidado, rapaz! Não corra tanto que aí vem a curva do Gancho! A mais perigosa de todas!
Era tarde! Miro, desesperado, tentava mudar de marcha e metia o pé no freio até o fim; porém, tudo em vão! O caminhão crescia em velocidade. A luz dos faróis lambia violentamente as margens da estrada, os palanques e as árvores relampejavam num relance. Os pneus chiavam sem atender ao esforço inútil de Miro para aguentar o veículo no declive cada vez mais abrupto. Gumercino gritou for te e o pânico tomou conta dos romeiros, quando surgiu a curva do Gancho. A estrada ali parecia suspensa sobre o abismo devorador.
Miro, desesperado, torceu a direção num golpe seco e violento para a esquerda, tentando jogar o caminhão contra o barranco rochoso da margem direita e evitando o precipício. Mas o caminhão não aguentou o impacto devido à velocidade muito acelerada e foi tombar de lado, chocando-se violentamente no chão, estilhaçando parte da grade, moendo o para-lama direito; e depois, ainda impulsionado pela força centrífuga virou de rodas para o ar e continuou aos trambolhões, a triturar paus, cabine, bancos, mulheres e homens. O motor deslocou se ao solo, a carga voava por todos os lados, e depois do seu valsar tão macabro, o caminhão parou à beira do abismo, completamente destroçado! Deixara atrás de si a destruição e a morte, num coro trágico de gritos e gemidos dos acidentados!
Dez minutos mais tarde, outro caminhão de romeiros surgia no local e os seus ocupantes ficaram estupefatos diante do espetáculo confrangedor descortinado à luz dos faróis. As manchas de gasolina e óleo confundiam-se com as poças de sangue dos corpo s mutilados . Aqui, romeiros jazam de bruços, com os corpos reduzidos a frangalhos; ali, alguns gemiam ou gritavam de dor sob destroços; acolá, outros haviam sido atirados contra o barranco rochoso e pareciam bonecos sangrentos! De baixo do motor sobressaiam-se as pernas de alguém completamente esmagado; das grades do caminhão pendia um braço esfacelado e um ferido arrastava-se pela estrada sem rumo definido.
O balanço do desastre fora trágico; dos vinte e oito romeiros, dez haviam sucumbido sob o massacre do caminhão; dois estavam desaparecidos e três outros não resistiram à viagem de retorno, morrendo antes do amanhecer devido à forte hemorragia das vísceras rompidas. Miro ficara pouco ferido. Ao torcer a direção a portinhola abrira-se e fora lançado contra a margem arenosa, sofrendo escoriações pelo corpo e fratura da perna direita. Gumercino morrera esmagado pelo motor, que lhe caíra em cima depois de saltar do caminhão; Bonifácio havia sido lançado com extrema violência sobre as pedras, rompendo o tórax e sucumbindo na primeira golfada de sangue. Entretanto, o seu rosto não parecia contrafeito naquela morte violenta; talvez sucumbiu inconsciente e sob o torpor da pinga de que ele tanto abusava. Salvaram-se treze romeiros entre mulheres, velhos e rapazes, embora alguns bastante feridos e com fraturas generalizadas. No dia seguinte foram encontrados os corpos do velho Favorito e de seu filho André, arremessados pelo grotão abaixo e estatelados nas lajes do riacho do Gancho. 

Do livro: “Semeando E Colhendo” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do Conhecimento.

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