terça-feira, 10 de julho de 2018

VOVÓ CATARINA

“Era noite. Naquele tempo não tínhamos as luzes da civilização. O gemido do negro no poste do martírio fazia com que todos temêssemos por nossas vidas. Ninguém estava seguro. Sinhazinha era temida por toda a negrada, e muitas e muitas noites nós passamos ao relento, sem ao menos ter a chance de dormir dentro das senzalas. Era o nosso castigo por sermos negros. Quitéria era uma negra muito bonita e por causa dela todos nós sofríamos. Nas noites triste das senzalas, ouvia-se o som dos nossos tambores. Os tambores de Angola, nossa terra, que talvez nunca mais veríamos. Ah! como era duro ser negro naqueles dias. Nosso destino era servir. Servir até a morte. Os tambores tocavam o ritmo cadenciado dos Orixás, e nos dançávamos. Dançávamos todos em volta da fogueira improvisada ou a luz de tochas ou velas de cera que fazíamos. A comida era pouca, mas para passar a fome nós dançávamos a dança dos Orixás. E assim, ao som dos tambores nosso povo, nos divertíamos, para não morrer de tristeza e sofrimento. Eu era chamada de feiticeira, mas eu não era feiticeira não, era curandeira , entendia de ervas com as quais fazia remédios para o meu povo, e de parto; eu era a parteira do povo de Angola, que estava errante naquela terra de meu Deus. Até que Sinhazinha me tirou do meu povo. Ela não queria que eu usasse meus conhecimentos para curar os negros, somente os brancos; afinal, dizia ela?”- Negro tinha que trabalhar até morrer, depois, era só substituir por outro. Mas Dona Moça, não pensava assim. Ela gostava de mim, e eu, dela. Fui jogada num canto, separada dos outros escravos, e todas as noites eu chorava ao saber que meu povo sofria e eu não podia fazer nada para ajudar de dia eu descascava coco e moía café no pilão, a noite eu cantava sozinha. Solitária, ouvia o cantar triste de meu povo, de longe. Ouvia lamento dos negros de Angola, pedindo a Oxalá a liberdade, que só depois nós entendemos o que era. E os tambores tocavam o seu lamento triste, o seu toque cadenciado, enquanto respondia de meu cativeiro com as rezas dos meus Orixás, a liberdade, que era cantada por todos do cativeiro, só mais tarde é que nós a compreendemos, a liberdade era de dentro, e não de fora.  Aqueles eram dias difíceis, e nós aprendemos com os cânticos de Oxóssi e as armas de Ogum o que era se humilhar, sofre e servir, até que nosso espírito estivesse acostumado tanto ao sofrimento e a servir sem discutir, sem nada obter em troca, que, a um simples sinal de dor ou qualquer necessidade, nós estávamos ali, prontos para servir, preparados para trabalhar. E nosso Pai Oxalá nos ensinou, em meio aos toques dos tambores na senzala ou aos chicotes do capitão, que é mais proveitoso servir e sofrer do que ser servido e provocar a infelicidade dos outros. Um dia, vítima do desespero de Sinhá, eu fui levada à noite para o tronco, enquanto meus irmãos na senzala cantavam. A cada toque mais forte dos tambores, eu recebia uma chibatada, até que, desfalecendo, fui conduzida nos braços de Oxalá para o reino de Aruanda. Meu corpo, na verdade, estava morto mas eu estava livre, no meio das estrelas de Aruanda…  -Fui pra Aruanda, lugar de muita paz! Mas eu retornei. Pedi a meu Pai Oxalá que desse oportunidade pra eu voltar ao Brasil pra poder ajudar a Sinhá, pois ela me ensinou muita coisa com o jeito dela de nos tratar. E eu voltei. Agora as coisas pareciam mudadas. Eu não era aquela nega feia e escrava. Era filha de gente grande e bonita, sabia ler e ensinava criança dos outros. Um dia bateu na minha porta um homem com uma menina enjeitada pela mãe. Era muito esquisita, doente e trazia nela o mal da lepra. Tadinha! Não tinha pra onde ir e pai desesperado não sabia o que fazer. Adotei a pobre coitada, fui tratando aos poucos e quando me casei, levei a menina comigo. Cresceu, deu problema, mas eu a amava muito. Até que um dia ela veio a desencarnar em meus braços, de um jeito que fazia dó. Quando eu retornei pra Aruanda, o que vocês chamam de plano espiritual, ela veio me receber com os braços abertos e chorando muito, muito mesmo. Perguntei por que chorava, se nós duas agora estávamos livres do sofrimento da carne, então, ela, transformando-se em minha frente, assumiu a feição de Sinhazinha! Ela era a minha Sinhá do tempo de cativeiro. E nós duas nos abraçamos e choramos juntas. Hoje, trabalhamos nas falanges da Umbanda, com a esperança de passar a nossa experiência pra muitos que ainda se encontram perdidos em suas dificuldades”.

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