Era domingo, e o ar estava tranquilo, proporcionando sensação de agradável quietude. A canoa deslizava silenciosa "sobre a superfície da água cristalina e mansa. O Sol fulgurante atingia o fundo pedregoso e limpo do rio, mostrando o cardume de cascudos e pintados em movimentos lépidos e sinuosos. Um majestoso pé de chorão inclinava-se na margem do rio e fazia deliciosa sombra. Abaixo dele estendia-se a faixa de areia suja de cavacos, pedregulhos e do lixo varrido pela chuva dos barrancos de terra descarnada. Arvores esguias, mas copadas e verdejantes, pareciam achegar seus troncos escuros até o espelho líquido do rio, como se apenas desejassem molhar as raízes na água límpida. Alguns pássaros de plumagem branca e as pontas das asas sarapintadas de um azul escuro arroxeado, voejavam baixo à cata de peixes imprudentes.
Rapazes e meninos estavam de cócoras, na praia do rio, jogando botões e baralho, quando Gumercino e Bonifácio encostaram a canoa e foram acolhidos por gestos amistosos.
Arriaram os remos, saltaram da canoa e os pés descalços imprimiram sua marca na areia. Depois subiram o barranco, por uma escada rústica feita de costaneiras de madeira. Alguns metros mais adiante, num tabuleiro de terra cor de tijolo pontilhada de grama rasteira e amarelecida, quatro rapazes tostados pelo Sol e de nervos retesados, jogavam argolas –de ferro em piquetes de madeira. Fizeram um gesto amistoso, quando Gumercino dirigiu-se a um deles:
— Atanázio, você não sabe se o Estanislau está com o caminhão livre? Ou se ele desceu para Itaoca?
Atanázio, homem alto e espinafrado, um tanto curvo para a frente, coçou uns restos de barbicha, respondendo numa voz dolente e arrastada:
Homem; saber mesmo num sei! Mas parece que ouvi o ronco do caminhão dele hoje de madrugada! — E apontando para a direita, em direção a uma casa feita de tábuas de canela brava, acrescentou: — Acho que o Miroslau, filho dele, está lá, no Sezefredo, e deve saber do pai!
Gumercino seguiu o carreiro de terra arenosa, que se abria entre tufos de ervas secas e capim empoeirado, não tardando a chegar à casa cor de café desbotado. O caminhão do Estanislau estava num largo de terra batida e alguém mexia nele. Miroslau, um rapagão de cabelos cor de mel, olhos azuis e faces apagadas, próprias do mestiço de caboclo e polonês, apareceu sendo interpelado por Gumercino:
— Olá! O Estanislau está aí?
— O pai está de cama; pegou febre nos baixos do Xerém. Estou lidando com o caminhão e aprontando as cargas para Itaoca.
— Nós queremos alugar o caminhão para a festa do Bonfim, desde quinta-feira até o domingo — replicou Gumercino.
— Mas tenho o compromisso do carregamento de Itaióca.
— Mas você não vai voltar na terça-feira? Nós só vamos na madrugada de quintafeira; acho que assim vai dar certo! Miroslau pensou, titubeou, indagando algo hesitante:
— O negócio tem de ser fechado agora mesmo?
— Ah! isso tem! Nós somos uns vinte e três e já havíamos combinado o preço com o Estanislau. Sabe como é; o pessoal tem suas coisas para arrumar e precisa saber com antecedência a certeza da viagem. Em caso contrário temos de arranjar outro caminhão. — Gumercino pensou e reforçou a proposta: — Outra coisa, nós garantimos tôdas as despesas de você! Serve?
Miroslau ainda cismava, indeciso, mas em seguida concordou:
— Tá bem. Desço hoje mesmo para Varginha e de madrugada sigo até Mirinsinho. Na quarta-feira, então, eu engraxo o caminhão e arrumo as instalações elétricas, para não termos surpresas durante a viagem de noite.
Gumercino, típico caboclo nortista, forte e atarracado, pele cobreada com veias à mostra, tinha as calças arregaçadas até o meio das canelas e vestia uma camisa sem mangas, xadrês preto e vermelho. Usava chapéu de palha trançada, meio atirado à nuca. Tirou o palhinha encharcado dos lábios, e circundando a mão num gesto significativo, inquiriu, resoluto:
— Feito o negócio, Miroslau?
— Mas o pai falou que precisa mais uns 20%, devido o aumento da gasolina.
Gumercino estacou, num gesto de desânimo e ao mesmo tempo especulativo:
— Não dá, Miro! De jeito nenhum! Tem dó; seja companheiro, pois a turma está chiando no preço combinado e há gente desistindo! Imagine qualquer aumento? O que posso fazer, e isso eu garanto, é arranjar mais uns cinco romeiros e assim você melhora a diferença. Serve?
Dali há pouco, ele e Bonifácio remavam rio acima, devagar, e suando em bicas sob o Sol dardejante das duas horas da tarde. Novamente a canoa foi encostada no baixio de urna enseada-mirim, onde o rio descansava da corredeira. Gumercino amarrou a canoa na estaca fincada no barranco e quando Bonifácio pulava para a margem, recomendou:
— Bonifácio; dê a notícia pro pessoal. O caminhão está fretado e agora não tem mais esse negócio de vai ou não vai! Quem assinou alista tem que ir ou então paga sua parte. Tá?
Quinta-feira. A madrugada estava deliciosamente fresca e o céu límpido pontilhado de estréias a tremeluzirem sobre a superfície tranquila das águas preguiçosas do rio raso. Três canoas encostavam na margem, ao pé dos chorões e delas desciam diversas pessoas bulhentas carregando sacos de roupas, sacudindo canecos, bules, frigideiras e panelas, e subiam alvoroçadas os degraus de madeira tosca fincados na terra e entremeados de erva rasteira.
Depois misturavam-se com outros grupos em torno do caminhão de Miroslau, num vozerio ruidoso e atrapalhação. O veículo estava coberto por um toldo alto esticado sobre seis pés direitos; no seu interior estendia-se a fila de cinco bancos colocados transversalmente.
— Vamos pessoal! Ponham as tralhas debaixo dos bancos; cada um no seu lugar e não misturem, para não dar confusão, — orientava Gumercino, num tom enérgico. — Os lampiões pendurem nas estacas da tolda, mas cuidado com o querosene; as lonas dobrem debaixo dos pés.
— Gumercino! — gritava nhá Verônica — Os farnéis, onde pomos?
Como um general, compenetrado de sua responsabilidade, Gumercino apoiou o queixo na mão esquerda e correu os olhos pelo caminhão, em cujo fundo havia sacos de aniagem, cestos, caixas de papelão, cobertores, caixotes contendo talheres, pratos, copos, bules, bacias, frigideiras e panelas. Então decidiu-se:
— Os farnéis temos que arrumar no banco do fundo; nem que alguém viaje encostado na grade. — Súbito, olhando o teto da cabine, gritou: — Ei, quem é que vai levando tarrafa, que só enche lugar?
— Sou eu, Gumercino! — E a voz tímida e embaraçada do velho Favoreto sobressaiu-se na algazarra geral. — Quero dar umas tarrafadas no rio da Várzea, junto à ponte das Araras e pegar uns cascudos dos bons! Vai servir para todos nós e garanto que não escapa um!
Gumercino, pensativo, trepou no estribo do caminhão, apalpou a tarrafa que fazia um volume grande sobre a cabine atuchada de coisas e conformou-se:
— Bem, desta vez você leva, mas os farnéis bem que podiam ir aqui!
— Dá muito soco! — atalhou o Miro, numa voz profissional.
Os galos já haviam cantado algumas vezes. As galinhas e os marrecos saiam a ciscar e a se debicar no terreiro, enchendo de bulha o ar fresco da manhã. Gumercino vistoriou tudo, mais uma vez, e num gesto de aprovação deu o sinal de partida.
— Toca, Miroslau!
O motor já estava aquecido e o caminhão partiu costeando a casa do Sezefredo; em seguida desceu para a esquerda, como se fosse para o rio, mas, de repente, num ronco forte e surdo, virou à direita em curva fechada e subiu a encosta dirigindo-se decididamente para a estrada arenosa talhada no seio do capinzal. Mas a marcha do veículo foi interrompida pelos gritos de alguém que parecia desesperado, superando o próprio barulho do motor.
— Pare, Miro! Pare, homem de Deus!
Era o Bonifácio, que saltou para o chão, alvoroçado:
— Espera um pouco, Miro, esqueci a cachaça e os torresmos lá no Jeremias!
E saiu a correr desabaladamente em direção à venda do Jeremias, recortando a silhueta agitada contra o horizonte iluminando-se pela luz do Sol vencendo a noite. Minutos depois ele voltava esbaforido, carregando pequeno saco de aniagem nos ombros e uma engradado de garrafas de pinga tinindo no sacolejo apressado. Com extremado carinho, os romeiros içaram a carga para o interior do caminhão.
— Eta Bonifácio! — exclamou o velho Favoreto — Quase esquece o principal!
O motor roncou novamente, e dali a pouco o caminhão corria pela estrada à margem do rio rumo à capital. De longe ainda se ouvia o som da harmônica cromática, puxada por alguém, executando uma trepidante rancheira acompanhada aos trancos pelas vozes dos romeiros jubilosos. O início da viagem se mostrava festivo. Dentro em pouco, corria entre eles o café quente, os bolos de goma, de polvilho e as panquecas de milho cozido, enquanto o cheiro forte dos cigarros de palha juntava-se ao aroma da cachaça...
Do livro: “Semeando E Colhendo” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do Conhecimento.
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