quinta-feira, 5 de julho de 2018

Os Romeiros – 3ª Parte

O Sol mostrou-se radiante no céu azul e claríssimo, refletindo-se na superfície da estrada manchada de óleo e sangue. Enquanto nove dos falecidos eram sepultados no modesto cemitério de Itaperica, outros seis cadáveres seguiam de canoa para a outra margem do rio, a fim de serem enterrados no seu lugarejo. Num gesto que fez todos chorarem, "seu" Jeremias estendeu a tarrafa sobre o corpo do velho Favoreto, cujo destino implacável o havia impedido de pescar alguns cascudos na bacia rasa do rio da Várzea, junto à ponte das Araras. A noite chegou, outra vez pontilhada de estrelas a luzirem indiferentes sobre a quietude das águas do rio das Pedras.
Itaperica dormia, mas em alguns lares diversas criaturas choravam os parentes acidentados no desastre da serra do Gancho. No entanto, espíritos familiares dos desencarnados também haviam se exaurido em prestar-lhes toda assistência possível no mundo espiritual. Quase todas as vítimas da trágica romaria, já haviam sido acomodadas em postos de socorro situados nas adjacências da Crosta terráquea. Algumas delas mostravam-se agitadas sob o impacto da morte violenta, e outras imobilizavam-se numa espécie de "choque" psíquico. Entidades benfeitoras dispendiam todos os recursos para livrar os desencarnados da "queda específica" na direção dos charcos do astral inferior, embora se tratasse de almas primárias e bastante presas às algemas da carne animal. Decorridas algumas semanas, os espíritos mais calmos foram encaminhados para as moradias astrais de sua ascendência espiritual, situadas na área astralina brasileira.
Gumercino, o cérebro organizador da romaria fatídica era o principal personagem daquele drama inesperado. Sua esposa, dona Merenciana, não quisera acompanhá-lo na excursão, alegando "maus pressagies"; Gabriel, seu cunhado, chegara atrasado e depois benzia-se pela boa sorte. Bonifácio tinha alegado o impossível para escapar da tragédia que estava a pressentir no âmago de sua alma; mas a esposa obrigara-o a ir de qualquer modo, para depois chorar inconsolável de remorso. Gumercino abriu os olhos, lentamente, e pôs-se a examinar o quarto singelo onde se encontrava, estranhando a claridade fosforescente. Descansava em cômoda poltrona de assento tão macio como espuma; um cobertor leve o aquecia produzindo um efeito vitalizante, pois sentia um frio cortante quando se descobria. Os pés estavam apoiados num respaldo revestido de algodão. Ao lado havia uma jarra cristalina com um líquido róseo, escuro, muito parecido ao suco de morango; junto à janela de caixilho de alumínio brilhante, balouçavam- se duas cortinas branquíssimas rendilhadas de bordados verde-malva agradabilíssimos.

Alguns vasos de material translúcido, semelhantes a conchas do mar voltadas para cima, estavam guarnecidas de ramalhetes de flores azulíneas, róseas, lilases e topazinas. Tudo era simples, mas agradável e tranquilizante.
Gumercino sentia-se algo confuso e perturbava-se quando as luminosas cores empalideciam e o ar pesava-lhe nos ombros despertando um desejo veemente de fugir dali em direção as vozes, que o chamavam para o lar no vilarejo. Naqueles momentos desaparecia a fosforescência opalina para dar lugar a uma cor cinzenta e sombria; e ele jurava ter entrevisto a imagem da esposa lacrimosa. Ainda julgava-se entontecido pelas pancadas recebidas na queda espetacular do caminhão, tratando de identificar o lugar onde estava hospitalizado.
Alegrou-se, aliviado, vendo penetrar no aposento um senhor idoso, de porte alto, majestoso e nobre. Os cabelos eram bastos e brancos, com reflexos prateados. Na face destacavam-se as sombrancelhas escuras, grossas, arqueadas sobre os olhos fulgurantes e dominadores, o que lhe dava um aspecto incomum no contraste singular com os cabelos esbranquiçados. Vestia uma espécie de túnica, com gola alta, presa à cintura por um cinto largo com lavores bronzeados. Trajava calças fofas, de seda cor de manteiga, que se prendiam junto aos tornozelos por um par de botas pequenas de belo matiz castanho. Apesar do seu traje lembrar algo da indumentária grega, a fisionomia de exuberante vitalidade mostrava as características próprias do tipo italiano e os traços másculos do calabrês.
Aproximou-se do leito e Gurmercino notou as belas mãos de dedos finos e compridos, de molde aristocrático, das quais ele podia jurar que saiam reflexos azulados, quando num gesto suave e harmonioso, tocou-lhe a testa, a região cardíaca e o plexo solar, numa auscultação profissional. Em seguida, meneando a cabeça, dirigiu-se a Gumercino com voz cordial e cálida:
— Meu irmão acha-se muito bem! Folgo em cumprimentá-lo por isso e pela sua boa disposição perispiritual.
Embora algo surpreendido pelo tratamento tão afetivo e o estranho diagnóstico, que nada o esclarecia, Gumercino apressou-se a dizer, num suspiro de alívio:
— Doutor, eu estava desassossegado e confuso, sem saber onde me encontro. — E depois riu, num desabafo quase infantil. — Creia, doutor; eu cheguei a imaginar que havia morrido! Por favor, pode me dizer onde fui hospitalizado depois do desastre, e o que é feito do meu pessoal?
O senhor idoso, malgrado a sua fisionomia severa, deixou transparecer no rosto uma expressão travessa, e fitando Gumercino bem dentro dos olhos, fazendo-o estremecer sob a energia crepitante que lhe penetrava no cérebro e descia-lhe pela coluna vertebral, avivava-lhe a mente despertando-lhe imagens e recordações longínquas. Gumercino, espantado, identificava ambientes, revia criaturas estranhas e conhecidas em lugares que lhe eram familiares, mas não se lembrava de tê-los visto em toda sua existência . Em vez da paisagem bucólica de Itaperica e as ribanceiras do rio das Pedras, êle só percebia um terreno montanhoso atravessado por estrada branquíssima, feita de pedras talhadas entre jazidas de mármore. Atônito, sentia-se outro homem movendo-se na paisagem diferente; reconhecia-se a si mesmo, porém, nada tinha a ver com Gumercino! Ainda sob a força magnética projetada pelo senhor de olhos chamejantes e sombrancelhas hirsutas, êle teve um sobressalto, um verdadeiro estalido no cérebro, e sem qualquer peia, exclamou num tom de profundo espanto:
— Santo Deus! Morri?! E ante o aceno afirmativo do seu interlocutor, perguntou, surpreso:
— Dom Giovanni?
— Sim, Gumercino, sim caro Pietro, "il Consentino"; eu sou Dom Giovanni!
Gumercino abriu a boca, embaraçado, baixou a cabeça, pois tudo se aclarara na sua mente, quanto ao pretérito. Traindo extrema humilhação, indagou, confrangido:
— Morreram todos?
— Quinze! Não eram quinze?
— Sim! Como isso aconteceu tão rapidamente, dom Giovanni? Ainda me sinto em Consenza, namorando o mar Jônio, Tirreno e o pico Polino! — E num longo suspiro: —
Parece que foi ontem; aceitamos o seu conselho e o programa de recuperação. Não foi assim?
— Impulsionado por rápida lembrança, acentuou. — Que pena! Carletto fugiu à prova?
— Não! — redarguiu Dom Giovanni. — Carleto também estava presente no desastre. Conseguimos burlar a vontade dele e encaminhamo-lo para a Terra, no devido tempo. É certo que não lhe cabe o mérito da escolha!
— Quem era êle?
— Bonifácio — elucidou o mentor. E acrescentou: — A Lei é severa mas justa!
Nenhum estranho sofreu no acontecimento trágico, porquanto foram afastados, à última hora, quem nada tinha a ver com a prova. Os sobreviventes feridos em breve prosseguirão na sua existência educativa, ainda mais fortalecidos para o futuro.
− Hum! — fez Gomercino sacudindo a cabeça. — Estaríamos quites com a Lei?
Dom Giovanni não respondeu, mas encaminhou-se à janela e de um só lance abriu as cortinas, desvendando formosa calina envolta per uma tênue nuvem luminosa, em cujo sopé se via modesta vivenda esbranquiçada sobressaindo-se entre flores e arbustos delicados.
Bandos de pássaros voejavam como flocos de luz viva, em bela policromia, pousando ora nos ramos das árvores, ora se rejubilando no frescor de deliciosa fonte de água cristalina.
Gumercino sentiu a alma bafejada por inefável gonzo espiritual, e num impacto, quase infantil, inquiriu, algo suplicante:
— Virgínia?
— Espera-o para o repouso sideral no devido tempo. Vocês começarão o programa ideado a séculos e agora já podem auxiliar os retardatários. Virgínia empenhou-se a seu favor; e por isso você está aqui bem assistido. Malgrado o seu pretérito violento, a existência simples na figura de Gumercino, serviu-lhe bastante para a recuperação espiritual.
Antes a singeleza de uma vida laboriosa e prestativa de um caboclo brasileiro, do que a indesejável fortuna de Pietro, "Il Consentino", não é assim?
Enquanto Dom Giovanni também parecia evocar suas lembranças amargas na sucessão dos séculos findos, Gumercino fechou os olhos e se viu, outra vez, na figura daquele célebre Pietro "II Consentino", mentor de uma quadrilha de bandoleiros chefiados por Carletto, que assaltavam os viajantes ricos e diante de qualquer reação os lançavam com as próprias carruagens, encosta abaixo, fazendo-os estatelarem-se nos abismos insondáveis da Calábria, na Itália. Suas reminiscências foram interrompidas pela voz severa e fraterna de Dom Giovanni:
— Primeiramente o erro! Depois a dor! E, finalmente, a recuperação! Agora cabe lhe "reiniciar" o curso educativo, pois só o amor, o bem e o estudo é que realmente fazem o espírito progredir! — Refletindo, acentuou. — A dor e o sofrimento não fazem evoluir; mas apenas retificam!

Do livro: “Semeando E Colhendo” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do Conhecimento.

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