quinta-feira, 5 de julho de 2018

O QUEBRA OSSOS – 1ª Parte

— Paulo! Chame a ambulância! Ligeiro, homem! Matias está quebrado, lá embaixo!
Os operários desciam dos andaimes, apressados, pela escada improvisada de madeira tosca; os mais afoitos escorregavam pelas cordas. Sobre retalhos de sarrafos, ripas e tábuas de pinho, jazia um homem de bruços, imóvel, gemendo, sem que alguém seanimasse de tocá-lo, tais eram os gritos lancinantes que soltava ao tentarem socorrê-lo. Vinte minutos depois se fez ouvir o uivo estridente da ambulância correndo amalucadamente pelas ruas de S. Paulo, aproximando-se do "local do acidente. Chegou e partiu dentro de alguns minutos levando a vítima, na qual o médico responsável pela tarefa constatou várias e dolorosas fraturas ósseas.
— Não sei o que há com esse homem! — dizia "seu Joaquim", o feitor, quando prestava declarações no inquérito formal da companhia seguradora. Essa é a sétima vez que Matias se acidenta em nossa firma, durante onze anos de serviço. Até parece mandinga, pois ele se quebra todos nos ossos. — E numa sugestão desconsolada, aduziu — Creio ser tempo dele se aposentar!
Matias não podia ser exonerado sem o consentimento do "Sindicato de Construções Civis", porquanto era empregado estável, com mais de dez anos de trabalho na mesma firma. Realmente, em onze anos de trabalho acidentara-se sete vezes, caindo de andaimes, de escadas e do caminhão que servia para o transporte de materiais. Então ele ficava engessado algumas semanas, no hospital. Houve casos em que os médicos ajustaram os ossos de modo deficiente, e o infeliz teve de ser quebrado outra vez, para retornar à forma normal. Haviam-no apelidado de "quebra ossos", e a quantidade de chapas radiográficas que ele possuía era suficiente para comprovar uma das mais tristes histórias de sofrimento e azar!
Vinte dias depois desse último acidente, Matias obtinha alta do hospital e se apresentava novamente ao serviço. O capataz olhou-o, de fisionomia azeda e desconsolada.
-Homem de Deus! Por que você não se aposenta duma vez? Que adianta trabalhar assim, se vive mais no hospital, todo quebrado?
— Que é que vou fazer, seu Joaquim? Tenho mulher e cinco filhos. O que o instituto paga não dá nem "pro" sustento, quanto mais "pro" futuro? Encolheu os ombros, desacorçoado:
— Pode ser sina, não digo que não; mas se Deus quer assim, que vou fazer? Um dia isso termina, nem que seja mesmo com a morte!
— Qual, homem! — atalhou Joaquim, o capataz. — Desse jeito você ainda vira farinha de ossos!
Joaquim, apesar de enérgico e rústico, era dessas almas simples e laboriosas, malgrado enfrentar os tipos mais ordinários em sua função espinhosa de feitor. Tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos, numa arrumação pensativa; em seguida, decidido, deu um leve empurrão em Matias, como a disfarçar a sua boa intenção:
— Vai, homem! Você daqui por diante fica na guarita, apontando os empregados e controlando os caminhões de carga. — Abrindo-se num sorriso satisfeito, arrematou, sem maldade: — Acho que do chão você não passa!
Matias assumiu a nova tarefa, com o desânimo a lhe minar a alma, e parecia ouvir uma voz íntima predizendo o fatalismo incessante de novas dores e quebradeiras ósseas. Sentia-se vencido pela má sorte; batido pelo cansaço que o deixava desencorajado para o futuro. No entanto, nenhuma criatura reagia tão vigorosamente na reparação dos ossos fraturados. O organismo de Matias zombava de suas angústias, parecendo ter pressa em lhe reconstituir os ossos, a ponto de algumas vezes corrigir os enganos médicos e acertando-lhe a conformação anatômica. Depois de uma fratura reparável somente em dois ou três meses, bastavam semanas para ele se recompor. Os médicos do instituto, surpresos, examinavam lhe a ossatura recuperada, as suturas coerentes e a rapidez da cura. E o laudo, portanto, era sempre o mesmo: "Apto para o serviço!"
De há muito tempo, Matias sonhava com a aposentadoria por invalidez, e depois complementaria o orçamento familiar fazendo alguns "bicos". Entretanto, sentia-se dominado por um complexo; naquela existência malvada já temia andar pelas ruas, desviando cascas de banana, contornando o asfalto úmido. Custava atravessar uma rua movimentada. Não subia mais escadas. Não se arriscava ao mais suave degrau. Não aceitava qualquer convite para uma passagem de caminhão, Inutilmente, tentava se libertar do gênio mau e sarcástico, que parecia rir-se ao predizer no âmago do seu espírito, a sina dolorosa de ser esmigalhado até o último osso! Graças a "seu" Joaquim, podia ficar protegido, junto ao chão, como apontador e porteiro da construtora, longe dos andaimes traiçoeiros, das cordas fracas e dos degraus podres que se desmantelavam à sua passagem.
— Acho que do chão não passa! — dissera seu Joaquim, consolador.
A sua infância fora bem azarada; a velha Maria Turquesa cansara de arrumar-lhe os ossos dos braços, das pernas, e, certa vez, precisou consertar-lhe o queixo fraturado numa queda do muro.
— Matias! — clamou "seu" Joaquim. — Abra o portão dos fundos; o caminhão vai entrar por lá! Avia-te, homem!
Era o terceiro mês que ele servia como apontador de operários e fiscal das cargas trazidas para o almoxarifado da construção. Sentia-se bem, muito bem; havia engordado cinco quilos naquela vida tranquila . Apanhou o molho de chaves e desceu para os fundos do terreno, onde terminava o esqueleto da construção. Abriu o portão e calçou as duas folhas pesadas de madeira; fez sinal ao chofer e indicou-lhe o caminho para levar a carga de ferros, cimento e quase uma tonelada de cano galvanizado para a rede de água e esgoto. O pesado veículo roncou forte e o motorista pisou firme no acelerador, para vencer o declive da calçada e dobrar, rápido, em direção ao almoxarifado, cujo terreno cedia facilmente. O ar desandou a gasolina e os pneus estalaram no cascalho solto. Um golpe violento de direção, uma derrapagem e quando o motor amainou foi que ouviram os ais de Matias, atirado numa poça de sangue junto ao pilar do primeiro pavimento. O feixe de canos galvanizados, que se sobressaia do caminhão, apanhara Matias na curva da entrada, e o lançara a mais de dez metros de distância, como arremessado por certeira catapulta...



Do livro: “Semeando e Colhendo” Atanagildo/Hercilio Maes – Editora do Conhecimento.

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