quinta-feira, 5 de julho de 2018

LENDA DA CIGANA ROSALINA

Rosalina não nasceu cigana, ao contrario do que muitos pensam. Conta a lenda que ela nasceu em Sevilha, em uma família tradicional espanhola. Rosalina nasceu, após uma série de tentativas frustradas do casal. Os filhos vinham e não vingavam. Nasciam temporões ou mortos e não iam além de meio ano. Nem o casal e nem a cidade acreditava que aquele ciclo tétrico pudesse ser rompido. Falava-se em castigo, praga, pela austeridade da família. Mas um fruto, depois do casal já idoso, finalmente vingou, juntando-se ao corpo daquela família e daquela infausta casa.
O nascimento da menina, trouxe a família um sopro de felicidade e de esperança. Até mesmo os amigos da família,  arriscaram a sonhar um belo futuro para a menina, acreditando em segredo, que aquele novo membro poderia mudar a sina da família e, quem sabe, amainar a sombra pesada do passado.
O povo queria ver aquela moça crescida abrandar em beleza e graça, para dissipar as figuras sisudas e de pouca beleza da família.

Os pais ainda pensavam, por que o destino não lhes concedeu um filho varão, para continuar aquela linhagem. É porque tinha de ser aquela menina para cumprir a sina.
O tempo foi passando e Rosalina foi crescendo. A menina encorpou, virou moça e estava pronta para cumprir a sua função na sociedade, namorar, noivar e casar.
Foi nesta época que os planos do pai, até então secretos, de ingressar na corte com um título de nobreza fracassaram. Assim sendo, o pai encerrou-se na mansão e passou a odiar Sevilha, tornando-se mais triste e ensimesmado do que era.
Essa tristeza profunda, esse ódio manso, medido, magoado, acabaram aproximando ainda mais pai e filha, e desse estreitamento, nasceu um pacto silencioso, um acordo velado que influenciaria em definitivo a vida da moça.

Rosalina decidiu que não iria casar, pois, teria de deixar a casa. Mesmo que não tivesse que deixar a mansão, o pai ficaria sozinho.E rosalina teria de quebrar o trato que com certeza mesmo sem palavras os dois haviam feito escondido. Abrir o coração para os outros, as portas da mansão para visitas, sair, conhecer o mundo... viver...O pai não pedia aquele sacrifício, mas ela sabia que contrariada, atendia ao querer que ficava mais no fundo da alma dele. Contrariada, ela satisfazia, era a melhor filha do mundo...
Esse trato sem palavras que pai e filha fizeram escondido, foi estabelecido em um momento crucial da vida de Rosalina. Aos dezesseis anos, no instante em que o botão estava prestes a desabrochar, na iminência de transformar-se em uma bela flor, a moça viu todas as possibilidades de uma vida que mal tinha começado, serem podadas. Não se tratava apenas de conhecer o amor, mas da oportunidade de viver fora da mansão, além dos limites da cidade. Casar ou não, era um mero detalhe. O cerne da questão era outro: Rosalina não poderia abrir o coração para os outros, as portas da mansão para visitas. Além disso, a melhor filha do mundo não devia deixar o pai sozinho. Não podia abandoná-lo, não podia desobedecer-lhe.
Desse modo, Rosalina, a filha exemplar, a filha fiel, tomou para si uma dor que não era sua, um silêncio que não era seu, apenas para agradar ao pai. E foi, vestindo, gradualmente, uma máscara, atras da qual se esconderia, por um longo período, com aquele mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele ódio em surdina, duradouro, de quem nunca se esquece. Dai a ficar enclausurada na mansão, fechada em uma estufa, isolada do mundo, seria uma questão de tempo.
Com a morte da mãe, o isolamento entre pai e filha aumentou, e o primeiro relógio, como mandava a tradição foi parado na mansão, a partir de então, o tempo seria só mesmo a noite e o sol, as duas metades impossíveis de parar

Quando o pai morreu, oito anos depois, foi a vez de rosalina, a última integrante viva da família, parar mais um relógio na mansão, reiterando os gestos do pai.
Rosalina desceu as escadas da mansão, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha, os olhos postos num fundo, muito além da parede, os passos medidos nenhuma vacilação. Abriu-se caminho para Rosalina. Quando todos pensaram que ela fosse para junto do pai, ela voltou-se para a parede e aquilo que ela trazia brilhante na mão, era o relógio de ouro do falecido pai. Os relógios da sala estavam todos parados, como mandava a tradição, as pessoas no velório escutavam as batidas do silêncio. Foi assim que Rosalina fez, pendurou na parede o último relógio da família, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. As pessoas viram tudo em silêncio de Igreja: Rosalina subiu novamente as escadas, exatamente como desceu.
De qualquer maneira, o fato e que Rosalina continuou vivendo encerrada em seu palácio, prisioneira da angústia, submersa em um poço de silêncio, depois da morte do pai, sua companhia diária passou a ser exclusivamente uma criada muda. Todavia Rosalina não era indiferente ao mundo exterior. Ao contrário, acompanhava tudo o que acontecia na cidade, ainda que nada acontecesse, desde sempre olhando detrás das cortinas.
Gradualmente o destino foi lhe preparando uma cilada. Rosalina percebeu que carecia de um homem empregado dentro de casa, para limpar a horta, para espantar os meninos que pulam o muro e jogam pedra, esses serviços, mas não podia ser dali, só um homem vindo de outra cidade.

Rosalina, sabia que só uma pessoa de outra cidade poderia entrar no palácio, seu ódio por aquele povo era eterno, ordens do pai. 
Uma tarde, por detrás de sua cortina, Rosalina viu aquele homem, de pele morena, alto, de olhos e cabelos negros. Jeito de folgadão, com um violino no ombro tocando para as moças que passavam. Já se afastava da casa quando uma voz o chamou. OI MOÇO, VEM AQUI. Uma voz clara, bonita.Protegida pela cortina. Pelo menos não é daqui, pensou. Foi o que ele disse. Sou cigano, se ela entendeu bem. Meu bando está acampado nos arredores de Sevilha. Gostou do feitio do homem, do seu jeito despachado, da fala fácil. Há muito não ouvia fala humana.
Assim o improvável aconteceu, afilha fiel rompeu o pacto, desobedeceu à ordem do pai, abriu as portas do palácio para as visitas, até então somente em velórios. Logo logo viria a segunda transgressão: a definitiva, Rosalina abriria o coração para os outros.
Pouco à pouco, a presença do cigano, foi tornando-se essencial.
A voz do cigano veio dar vida ao palácio, encheu de música o oco do casarão, afugentou para longe as sombras pesadas em que ela, se se dar muito conta, vivia. De repente acordada pelo som do violino, viu a solidão que era a sua vida. Como foi possível viver tanto tempo assim? Ela estava virando uma morta, se enterrava no oco do escuro, ela e o mundo uma coisa só. E dentro dela rugia à seiva, a força que através de verdes fusos da à vida. E o som, que a princípio chegava a doer-lhe nos ouvidos, alta demais, acordou-a para a claridade, para a luz das coisas, para a vida.

Enfim, Rosalina abriu as portas de sua vida e escancarou o coração para os outros.Infringiu a regra capital, transpôs à última barreira rumo a perdição. Estava à beira do abismo, decidiu pular e entregar-se ao cigano.
Violando as leis Rosalina arrisca-se na clandestinidade. Durante o dia, a patroa, durante a noite, à amante. Nessa alternância de dias sem sentido, seguidos de noites maravilhosas, estabeleceu-se uma relação subterrânea, a vida partida ao meio, a noite e o dia.
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Dentro de pouco tempo os muros do palácio já não a prendiam mais, saia à noite atras do cigano, coberta por uma capa e seguia o som do violino do amado até chegar ao bando. No início o povo à olhava com desdém. Mas aos poucos ele se misturou, aprendeu as danças e assim passava as noites dividida entre à música do bando e os braços do cigano. Rosalina sabia que ele tinha um passado, mas nunca quis saber qual. O cigano era prometido de infância para alguém de outro bando. Quando a noiva soube que seu prometido tinha se envolvido com Rosalina, rompeu o compromisso e rogou uma praga, de que ambos jamais seriam felizes. 

A semente no corpo, foi uma questão de tempo. Rosalina, passou a maior parte da gravidez com o bando, que se viu obrigado a aceitá-la já que o cigano era filho do chefe do bando. E eis que o bebê de Rosalina nasceu. Noite longa, parto difícil, apenas a parteira do bando para ajudá-la. Mas Rosalina tinha de sofrer, era chegada à hora do castigo, o início do fim. As dores vindo de hora em hora. Rosalina, sofrendo muito, demais. O cigano do lado de fora da tenda sem poder fazer nada, o coração pesado de medo, de culpa, de pena...
De repente o silêncio, não fica claro se a criança nasce morta ou é assassinada pela parteira. O fato é que na noite seguinte, a parteira do bando entregou ao cigano um pacote úmido, feito manchado de terra, um peso estranho, uma umidade desagradável, um cheiro nauseabundo, indicou-lhe com as mãos o mato, fora da clareira onde ficava o acampamento, o destino do bebê de Rosalina, a semente na terra.
Após enterrar o filho, o cigano saiu errante floresta afora. Os olhos molhados, brilhando. Não conseguia segurar o pranto.

E assim termina à história de Rosalina, que venceu os preconceito, quebrou correntes, rompeu amarras, foi aceita no bando, mas, não escapou da praga de outra cigana... toda à noite, há muitas noites, tarde da noite, quando a cidade dormia, Rosalina que após o acontecido, voltou para o palácio, saía da casa e ia por aí cantando à sua cantiga no mundo da noite...O que ela falava em sua cantiga, nunca ninguém soube...não existia nexo, pois era o canto das loucas...

Esta lenda foi tirada do livro "Lendas Gitanas", que chegou à muito tempo às minhas mãos.

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